sexta-feira, 30 de maio de 2008

5

da série: Iconografia
"Sebastião"
óleo s/ tela, 80 x 30 cm
MJoão, 2003

"Pois deves saber que nós poetas não podemos seguir o caminho da beleza sem que Eros se nos depare e se torne nosso guia; podemos bem ser heróis à nossa maneira e guerreiros honestos, mas somos sempre como as mulheres, pois a paixão é a nossa sublimação e o nosso desejo será sempre o amor - é esta a nossa vontade e a nossa vergonha. Vês agora por que é que nós poetas não podemos ser sábios nem dignos? Que seguimos necessariamente o caminho falso, que necessariamente permanecemos libertinos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e loucura, a nossa fama e distinção uma farsa, a confiança do público em nós altamente ridícula e a educação do povo e da juventude através da arte um empreendimento arriscado, a proibir. De outro modo, como poderia ser educador aquele que tem inata uma incorrigível e natural atracção para o abismo?"

In «A Morte em Veneza», Thomas Mann, edit. Relógio d'Água 1987, trad. Cláudia Fisher.


quinta-feira, 29 de maio de 2008

4.


da série: Iconografia
"O Beijo de Judas"
óleo s/ tela, 30 x 50 cm
Mª João, 2004
vendido
"Ágaton levantou-se, pois, para se instalar ao pé de Sócrates. Mas eis que de repente uma horda de foliões chega à entrada da porta de casa. Ao vê-la casualmente aberta por alguém que saía, avançaram logo direitos à sala e instalaram-se. Foi uma perturbação geral e, sem sombra de ordem, era-se obrigado a beber vinho em grande quantidade. Erixímaco, Fedro e mais alguns outros, segundo Aristodemo, aproveitaram a altura para se irem embora. Quanto a ele, deixou-se invadir pelo sono e dormiu a bom dormir - pois as noites eram então longas - para só acordar de madrugada, quando já os galos cantavam.
Ao abrir os olhos, reparou que uns estavam a dormir e que outros se tinham já ido embora. Apenas Ágaton, Aristófanes e Sócrates se mantinham acordados, a beber por uma grande taça que iam passando pela direita. Sócrates estava a conversar com eles. Aristodemo pouco se lembrava do que diziam, pois não tinha seguido a conversa de início e, além disso, estava ainda ensonado. Mas, de uma maneira geral, Sócrates insistia em fazer-lhes ver que o mesmo homem que sabe compor tragédias sabe também compor comédias, e que aquele que tem a arte do poeta trágico tem também a do poeta cómico."
In «O Banquete», Platão, Edit. 70, trad. Mª Teresa S. de Azevedo
"Tal como o homem verdadeiro e bom do Hípias Menor é o que é capaz de fazer mal e mentir, assim também o poeta que sabe representar a face trágica da vida deve saber representar a sua face cómica".
In Notas da tradutora à obra citada.






quarta-feira, 28 de maio de 2008

3.

da série: Iconografia
"Criação de Eva"
óleo s/ tela, 27 x 55 cm
Mª João, 2004

Desclassificação da matéria; ela não é ideológica

"Entre velar e revelar se joga, ao longo desta história, o fim último da pintura. Paul Klee dirá que a arte torna visível. Talvez isso tenha funcionado durante algum tempo e sobretudo como um programa para o modernismo. Não ficaria ele espantado com o papel da visibilidade nos dias de hoje? O excesso de imagem a que estamos submetidos submerge e impede ou dificulta o conhecimento em vez de o apoiar, e a ideia de Klee parece pedir uma espécie de inversão em que o papel libertador da arte passe por uma espécie de contenção purificadora que recupere o velar, ocultar, como elemento a considerar no que se exibe ou revela. Assim, o que uma pintura mostra num novo regime de visibilidade - o nosso, de hoje - é sempre um detalhe sem a nostalgia do absoluto.Afinal não nos restam senão fragmentos, hipóteses entre infinitas combinações possíveis."

In Prefácio de Manuel San Payo a «A Obra-Prima Desconhecida», Honoré de Balzac, trad. Silvina Lopes, Edit. Vendaval, 2002

terça-feira, 27 de maio de 2008

2.


Mª João Rato
da série: Pinturas de boudoir

"Paisagem com ombro"
óleo s/ tela, 50 x 70 cm , 2004





"CYRIL. (entra, transpondo a janela aberta que dá para o terraço). Meu caro Vivian, não te feches todo o dia na biblioteca. Está uma tarde perfeitamente encantadora. O ar embriaga de tanta suavidade. Há neblina nos bosques e um esplendor purpurino nas árvores. Vamos sair daqui, estender-nos na relva, fumar cigarros, desfrutar a Natureza.
VIVIAN. Desfrutar a Natureza! É bom de dizer. Perdi inteiramente essa faculdade. As pessoas garantem-nos que a Arte nos faz amar a Natureza muito mais do que a amaríamos sem ela, e que os segredos da segunda nos são revelados pela primeira. Também dizem que após o estudo minucioso de Corot e Constable vemos coisas naturais que antes tinham escapado à nossa observação. A minha própria experiência diz-me o contrário: quanto mais estudo a Arte, menos me interessa a Natureza(...)
CYRIL. Bem, não é preciso olhar para a paisagem. Basta estender-nos na relva, fumar e conversar.
VIVIAN. Mas a Natureza é tão desconfortável. A relva é dura, e áspera, e húmida, e cheia de medonhos insectos pretos. (...) Se a Natureza fosse confortável, a arquitectura nunca teria sido inventada."


In«O Declínio da Mentira», Oscar Wilde, Edit. Vega 2005, trad. Ernesto Sampaio

1.

da série: Pinturas de boudoir
"Parece mesmo o Paraíso"

Óleo s/ tela, 50 x 70 cm

ano: 2004


"Esta é uma história para ser lida na cama, numa casa velha, em noite de chuva. Os cães dormem e os cavalos de sela - Dombey e Trey - fazem ouvir-se nos estábulos do outro lado da rua suja, por detrás do pomar. A chuva é suave e de uma necessidade sem desespero. Os lençóis de água estão num nível satisfatório, o rio que corre perto está cheio, os jardins e os pomares - estamos num virar de estação - estão convenientemente irrigados. Quase todas as luzes estão apagadas na pequena aldeia perto da cascata onde, antigamente, o moinho costumava produzir riscado de algodão.(...)A vila chamava-se Janice, o nome da primeira mulher do dono do moinho. A norte da vila situava-se o Lago de Beasley - uma massa de água profunda, em forma de cotovelo, com margens densamente arborizadas. Aqui havia água e verdura e um pintor do século dezanove teria posto em primeiro plano uma linda mulher numa mula, ligeiramente debruçada sobre a criança que tinha nos braços e acompanhada por um homem com um bastão. Isto permitiria ao artista chamar ao quadro «Fuga para o Egipto», embora tudo o que ele quisesse celebrar fosse o seu prazer desconcertante numa bela paisagem de um dia de Verão".

In "Parece mesmo o Paraíso" de John Cheever, edit. Relógio d'Água, 1987