segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

17.

da série:"não sei mais do que um miúdo de 10 anos"

'o que é um pecado?'
(em execução)
«O que fazemos nós dentro destes corpos», disse o senhor que se preparava para se estender na cama ao lado da minha.
A sua voz não tinha uma entoação interrogativa, talvez não fosse uma pergunta, era só, a seu modo, uma constatação, em todo o caso seria uma pergunta a que eu não poderia responder.(…)
«Talvez viajemos dentro deles», disse eu.
Devia ter passado um certo tempo desde a sua primeira frase, tinha seguido outra linha de pensamento: alguns segundos de sono, talvez. Estava muito cansado.
«Como disse?», perguntou.
«Estava a referir-me aos corpos», disse eu, «talvez sejam como malas, em que nos transportamos a nós próprios».
Olhei para ele e, na luz esverdeada, vi o perfil de um rosto afilado, as mãos sobre o peito.
«Conhece Mantegna?»
«Não», disse, «é um indiano?»
«É um italiano», disse eu.
«Só conheço ingleses», acrescentou, «os únicos europeus que conheço são ingleses». (…)
«Mantegna é um pintor, mas eu não o conheci, morreu há alguns séculos».
O homem respirou profundamente. Estava vestido de branco, mas percebi que não era muçulmano. (…)
«O senhor o que é?»perguntei, «queira desculpar a minha indiscrição»-
«Sou jaina», disse. «É uma religião muito bela e muito estúpida».
Disse isso sem qualquer desprezo, sempre no tom neutro de um depoimento, como se fizesse uma afirmação diante do guichet de uma repartição pública.(…)
Quando voltou a falar tive uma espécie de sobressalto. «Eu vou para Varanasi», disse, «e o senhor?»
«Para Madrasta», disse eu, queria ver o lugar onde dizem que o apóstolo S.Tomás foi martirizado, os portugueses construíram lá uma igreja no séc. XVI, não sei o que resta dela. E depois tenho de ir a Goa, vou consultar uma antiga biblioteca, foi para isso que vim à Índia.
«É uma peregrinação?», perguntou ele.
Respondi que não. Ou melhor, sim, mas não no sentido religioso do termo. Quando muito era um itinerário privado, sei lá, procurava somente rastos.
«O senhor é católico, suponho», disse o meu companheiro.
«Todos os europeus são católicos, de certo modo», disse eu. «Ou pelo menos cristãos, é praticamente a mesma coisa».(…)
«Em tempos li os Evangelhos», disse ele, «um livro muito estranho».
«Só estranho?»
Teve uma hesitação. «Tambem cheio de soberba», disse, «sem ofensa».
O meu companheiro apagou o cigarro e tossiu. «Vou para morrer», disse, «restam-me poucos dias de vida». Ajeitou a almofada debaixo da cabeça.«Mas talvez seja melhor dormir». Continuou, «não temos muitas horas de sono, o meu comboio parte às cinco».
«O meu parte pouco depois», disse eu.
«Não tenha receio», disse ele, «o criado virá acordá-lo a tempo. Suponho que não teremos ocasião de nos voltarmos a encontrar sob as aparências em que nos conhecemos, estas nossas actuais malas. Desejo-lhe boa viagem».
«Boa viagem para si também», respondi.

“Nocturno Indiano” de Antonio Tabucchi, Quetzal Editores, Lisboa/ 1995.