sábado, 28 de junho de 2008

9.

da série: Iconografia
"Encarnação"
óleo s/ tela, 50 x50 cm
MJoão, 2006
"Assim, foi mais a exigência da natureza das minhas aspirações do que qualquer falta degradante que me tornou o que fui e separou em mim, com uma fronteira mais nítida do que na maioria das pessoas, os domínios do bem e do mal em que se divide e de que se compõe a dupla natureza do homem.
Fui, deste modo, levado a reflectir profundamente, frequentemente, nesta terrível lei da vida que está na origem da religião e que é uma das mais abundantes fontes de angústia. Embora fosse tão profundamente dúplice, não era, de nenhum modo, um hipócrita; ambos os meus aspectos eram profundamente sérios; era igualmente eu, quer quando me punha de parte, reservado e cheio de vergonha, quer quando, em plena luz, trabalhava pelo avanço da ciência e procurava aliviar a tristeza e a dor. Ora aconteceu que os meus estudos científicos, reagiram e lançaram uma forte luz sobre esta consciência duma luta perpétua entre os elementos que me constituíam. A cada dia que passava e pelos dois lados do meu espírito, o moral e o intelectual, ia cada vez mais perto daquela verdade, cuja descoberta, embora parcial, me condenou a tão terrível desastre: a verdade de que o homem não é, na realidade, uno, mas duplo. E digo duplo porque o estado dos meus conhecimentos não me permite ir além deste ponto. Outros irão mais longe do que eu, outros descobrirão mais na mesma direcção; e atrevo-me a prever que um dia se descobrirá que o homem é simplesmente uma comunidade de variados, incompatíveis e independentes cidadãos."
In 'O Estranho Caso do Dr Jekyll e Mr.Hyde' de Robert Louis Stevenson;Edit. Relógiod'Água,1987; Trad. de Agostinho da Silva.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

8.

da série: Iconografia

"Antoninho"
óleo s/tela, 80 x 30 cm

MJoão, 2007
"Nada nos envelhece mais do que uma colecção de objectos de arte.
Tirou, um por um, os personagens da Commedia, das prateleiras, e colocou-os no charco de luz onde pareciam patinar no tampo de vidro da mesa, girando nos seus pedestais de espuma dourada, como se ficassem para ali a rir, a rodopiar e a improvisar eternamente.
Scaramouche dedilharia a guitarra.
Brihella aliviaria os passeantes das suas bolsas.
O Capitão, como todos os militares, brandiria infantilmente a sua espada.
O Doutor mataria os pacientes a fim de os livrar das doenças.
Os anéis de macarrão ficariam para sempre suspensos por cima das narinas de Pulichinelo.
Pantalão babar-se-ia de gozo diante dos seus sacos a abarrotar de dinheiro.
A Innamorata, como todos os travestis deste mundo, seria seguida por uma multidão a caminho do teatro.
Colombina continuaria pela eternidade fora apaixonada por Arlequim - «era pura loucura confiar nele».
E Arlequim...O Arlequim...o arqui-improvisador, brincalhão, malandro, o rei dos vira-casacas...pavonear-se-ia para todo o sempre na sua pulmagem multicor, sorriria maliciosamente por detrás da máscara, entraria sorrateiramente nas alcovas, venderia fraldas para os filhos do Grande Eunuco, dançaria à beira do abismo...O Perfeito D. Camaleão!"
In 'UTZ', de Bruce Chatwin; Quetzal Editores, Lisboa 1991; trad. de José Luis Luna

terça-feira, 24 de junho de 2008

7.

da série: Iconografia
'Calvário'
óleo s/ tela, 80 x 30 cm
MJoão, 2003
'IMAGEM (ESTIL.)
A imagem é uma das figuras de pensamento, que se reduz a uma confrontação de um objecto com outro, por forma concisa, e sem a veleidade de pretender caracterizar todas as semelhanças que existam entre os dois objectos. Em última análise, a imagem nada mais é do que uma metáfora desenvolvida de modo a fugir à simples comparação, para mais incisivamente dar uma transfiguração mais impressiva. A frase «os olhos são o espelho da alma», constitui uma imagem impressiva, mas o mesmo não sucede já com estoutra, em que se não eliminou o termo de comparação: «os olhos são como que o espelho da alma». (...) A imagem é um recurso de que se lança mão para se deixar ao ouvinte ou ao leitor, o prazer de descobrir quais os pontos de contacto que pretendemos frisar, nas relações entre dois objectos diferentes. (...)'
In Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira

quarta-feira, 18 de junho de 2008

6.

da série: iconografia
"António"
óleo s/ tela, 73 X 60
MJoão, 2007
"É na incapacidade da ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. (...)"
Fernando Pessoa
'O Provincianismo Português' (1928) in «Notícias Ilustrado», nº 9, Lisboa, 12-VIII-1928