quinta-feira, 15 de outubro de 2009

23.

Da série: Iconografia
'anunciação'
óleo s/ tela, 117 x 70cm
M João, 2006
'Este é o meu corpo' (...) Somos obcecados pela vontade de mostrar um isto, o isto onde se apresenta o Ausente por excelência: nunca o teremos deixado de chamar, convocar, consagrar, interpelar, captar, querer, e querer absolutamente.
'Este é o meu corpo'...desafia, apazigua todas as nossas dúvidas sobre as aparências, e dá ao real o verdadeiro retoque final da sua Ideia pura: a sua realidade, a sua existência. Desta frase, nunca acabaríamos de modular as variantes (...o nu na pintura, Madame Bovary sou eu, a cabeça de Luis XVI, as estampas anatómicas de Vesálio ou Leonardo, a voz - de castrado, de soprano, etc. -, o histérico: na verdade é toda a textura de que somos tecidos...), e que pode gerar a totalidade do corpus de uma Encilopédia Geral das Ciências, das Artes e dos Pensamentos do Ocidente. (...)
O intervalo entre os corpos é o seu ter-lugar em imagens. As imagens não são aparências, são o modo como os corpos se oferecem entre si, são a vinda ao mundo, ao bordo, à glória do limite e do fulgor. Um corpo é uma imagem oferecida a outros corpos, todo um corpus de imagens lançadas de corpo em corpo, cores, sombras locais, fragmentos, grãos, aréolas, lúnulas, unhas, pêlos, tendões, crânios, costelas, pélvis, ventres, meatos, espuma, lágrimas, dentes, babas, fendas, blocos, línguas, suores, líquidos, veias, penas e alegrias, e eu, e tu.'
In 'Corpus' de Jean-Luc Nancy, trad. Tomás Maia, Ed. Vega, 2000

quinta-feira, 11 de junho de 2009

22.


da série:
Pinturas de Boudoir III
óleo s/ cartão, 18 x 15 cm
'Trabalhava depressa e com paixão. Foi um retrato com aquilo de que os meus olhos velados pelo coração, se aperceberam. Parece-me sobretudo que ele traduzia melhor o interior: o fogo robusto de uma força contida. Ela tinha na orelha uma flor que ouvia os seus perfumes. E a sua fronte lembrava, na sua majestade, pelas sua linhas sobreelevadas, uma frase de Poe: "não há beleza perfeita sem uma certa singularidade nas proporções".
In 'NOA NOA', Paul Gauguin, Ed. Ulmeiro, col. Mínima.

terça-feira, 9 de junho de 2009

21.




Outras coisas que eu também faço

Moldura c/ espelho: (restauro personalizado) da série ACHADO NA RUA
Folha de prata, tinta acrílica

domingo, 24 de maio de 2009

20.

da série:
Pinturas de Boudoir
II
óleo s/ cartão, 18 x 15 cm
moldura: "achada na rua"
'A superfície polida reflectia as sombras humanas e os móveis pançudos, enquanto espelhos altos suscitavam a ilusão de espaços multiplicados até ao infinito. Para libertar a cúpula furada, donde provinha a luz, amores cor-de-rosa seguravam uma sanefa pintada. E a toda a volta corria uma galeria, donde (recitou o guarda do castelo) outrora as ondas de música corriam sobre os convivas que estavam em baixo.
Falou das cinquenta e cinco salas do castelo e, segundo a rotina estabelecida, caiu nas alusões matreiras sem que as suas graças conseguissem desenrugar por pouco que fosse, o seu rosto com a boca de esguelha. Essas salas não se abriam para toda a gente. Os grandes senhores da época tinham muito gosto pelas malícias, o mistério, a dissimulação, os esconderijos, os desvãos ocultos e propícios para as delícias secretas (e as polícias secretas) e para onde se entrava graças a dispositivos mecânicos. E ele parou na frente de um espelho fixado na parede que, sob a pressão de uma mola, deslizou para o lado e, perante a surpresa geral, pôs à mostra uma escada estreita em caracol com os degraus finamente trabalhados. Junto da escada, à esquerda, erguia-se, sobre um pedestal, um dorso de homem reduzido a 3/4, sem braços, coroado de bagas, com um saiote de folhas artificiais e o alto do busto um pouco deitado para trás. Houve "ahs" e "ohs", "etcoetera", disse o guia e expôs no lugar o espelho mistificador. "Ou então assim" - e, um pouco mais longe, levantou a aldraba duma almofada de tapeçaria de seda que não oferecia nada de insólito e que se abriu como uma porta escondida sobre um corredor que conduzia para o desconhecido e cheirava a bafio. "Eles gostavam disto - afirmou o maneta - outros tempo, outros costumes", prosseguiu ele, com uma futilidade sentenciosa, e a visita continuou. '
In Thomas Mann, O Cisne Negro

sexta-feira, 15 de maio de 2009

19.

da série:

Pinturas de Boudoir

I

óleo s/ cartão, 18 x 15 cm,MJoão

moldura: "achada na rua"

"Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava castelo...

...Embora improvisada com os enxalmos e mantas dos seus machos levava grande vantagem à de dom Quixote, que só continha quatro mal acepilhadas tábuas sobre dois bancos não muito iguais, com um colchão que de tão fino parecia colcha, cheio de godilhões que, a não mostrarem que eram de lã por alguns rasgões, ao tacto da dureza pareciam calhaus, e dois lençóis feitos de coiro de adarga, e um cobertor cujos fios, se se quisessem contar, não se perderia um só da conta. Nesta maldita cama se deitou dom Quixote;..."

In 'Dom Quixote' de Miguel de Cervantes, Clássicos Civilização,Cap. XVI


terça-feira, 3 de março de 2009

18.

"Alminha"
óleo s/tela, 80 x 30 cm.
Mª João, 2008
´ROADKILL´
Quanto tempo resta
À pomba pureza
Branca e decapitada
De amarelo vermelho manchada
Colhida pelo Minotauro
Mecanizado com faróis de halogéneo
Numa auto-estrada diurna
Da Alemanha de Leste?
O tempo que leva a percorrer
A distância entre a morte e a vida
Quanto tempo resta
À serpente perdição
Verde esmagada
De estrada manchada
Pisada pelo Gigante rodado
Com botas cardadas
Na interminável Via Dolorosa
Do deserto do Arizona?
O tempo que leva a percorrer
A distância entre a morte e a vida
Puro como a Pomba
Prudente como a Serpente.
In "Como Escavar um Abismo", Poesia,
de Fernando Ribeiro, Quasi Edições, 2005

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

17.

da série:"não sei mais do que um miúdo de 10 anos"

'o que é um pecado?'
(em execução)
«O que fazemos nós dentro destes corpos», disse o senhor que se preparava para se estender na cama ao lado da minha.
A sua voz não tinha uma entoação interrogativa, talvez não fosse uma pergunta, era só, a seu modo, uma constatação, em todo o caso seria uma pergunta a que eu não poderia responder.(…)
«Talvez viajemos dentro deles», disse eu.
Devia ter passado um certo tempo desde a sua primeira frase, tinha seguido outra linha de pensamento: alguns segundos de sono, talvez. Estava muito cansado.
«Como disse?», perguntou.
«Estava a referir-me aos corpos», disse eu, «talvez sejam como malas, em que nos transportamos a nós próprios».
Olhei para ele e, na luz esverdeada, vi o perfil de um rosto afilado, as mãos sobre o peito.
«Conhece Mantegna?»
«Não», disse, «é um indiano?»
«É um italiano», disse eu.
«Só conheço ingleses», acrescentou, «os únicos europeus que conheço são ingleses». (…)
«Mantegna é um pintor, mas eu não o conheci, morreu há alguns séculos».
O homem respirou profundamente. Estava vestido de branco, mas percebi que não era muçulmano. (…)
«O senhor o que é?»perguntei, «queira desculpar a minha indiscrição»-
«Sou jaina», disse. «É uma religião muito bela e muito estúpida».
Disse isso sem qualquer desprezo, sempre no tom neutro de um depoimento, como se fizesse uma afirmação diante do guichet de uma repartição pública.(…)
Quando voltou a falar tive uma espécie de sobressalto. «Eu vou para Varanasi», disse, «e o senhor?»
«Para Madrasta», disse eu, queria ver o lugar onde dizem que o apóstolo S.Tomás foi martirizado, os portugueses construíram lá uma igreja no séc. XVI, não sei o que resta dela. E depois tenho de ir a Goa, vou consultar uma antiga biblioteca, foi para isso que vim à Índia.
«É uma peregrinação?», perguntou ele.
Respondi que não. Ou melhor, sim, mas não no sentido religioso do termo. Quando muito era um itinerário privado, sei lá, procurava somente rastos.
«O senhor é católico, suponho», disse o meu companheiro.
«Todos os europeus são católicos, de certo modo», disse eu. «Ou pelo menos cristãos, é praticamente a mesma coisa».(…)
«Em tempos li os Evangelhos», disse ele, «um livro muito estranho».
«Só estranho?»
Teve uma hesitação. «Tambem cheio de soberba», disse, «sem ofensa».
O meu companheiro apagou o cigarro e tossiu. «Vou para morrer», disse, «restam-me poucos dias de vida». Ajeitou a almofada debaixo da cabeça.«Mas talvez seja melhor dormir». Continuou, «não temos muitas horas de sono, o meu comboio parte às cinco».
«O meu parte pouco depois», disse eu.
«Não tenha receio», disse ele, «o criado virá acordá-lo a tempo. Suponho que não teremos ocasião de nos voltarmos a encontrar sob as aparências em que nos conhecemos, estas nossas actuais malas. Desejo-lhe boa viagem».
«Boa viagem para si também», respondi.

“Nocturno Indiano” de Antonio Tabucchi, Quetzal Editores, Lisboa/ 1995.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

16.

"david"
óleo s/ tela, 100x 100 cm
Mª João, 2006
'...ao estudar as mais variadas teorias produzidas para explicar a experiência estética, notamos logo, independentemente dos diversos pontos de vista, que algumas qualidades e elementos específicos determinam globalmente o caracter dessa experiência. Ela implica sempre uma certa distanciação do espectador, uma certa separação psicológica entre o que está representado na imagem e o que está a ser observado. Todas as teorias concordam em que, quando o observador é levado a uma acção ou a um determinado comportamento que pode avaliar-se em termos educativos, políticos, religiosos ou outros, acaba a experiência estética, naquilo que ela tem de específico.
A experiência estética, já foi dito muitas vezes, é pura contemplação, desinteressada.
Por isso, para uma abordagem dentro do domínio estético, é essencial que a obra de arte seja considerada isoladamente de tudo o resto; preservar a sua autonomia, passa por destacá-la da realidade fora dela. Questionar até que ponto os traços gerais de uma obra têm de comum com a realidade envolvente, é enfraquecer a sua autonomia.
Ora, é importante lembrar que em todos os grandes debates sobre o estatuto da imagem, a atitude estética nunca foi sequer aflorada. Tanto para os destruidores de imagens, os iconoclastas, como para os seus defensores, desde a Antiguidade até à Reforma, a atitude estética estava longe de ser considerada. Por muito radicalmente opostas que fossem as suas posições, partilhavam a convicção que uma imagem não existe por si só, que não é autónoma, e que deve transportar o espectador para lá da mera contemplação. De facto, um estudo destes debates mostra-nos até que ponto é recente a atitude estética e como era insignificante.
In 'Icon, Studies in the history of an Ideia', Moshe Barasch